Um estudo da Universidade Federal de Juiz de Fora revela que as hidrelétricas construídas em regiões tropicais podem emitir quantidades de gases-estufa até maiores do que as usinas movidas a combustíveis fósseis
As usinas hidrelétricas sempre foram tidas como fontes de energia limpa, com baixo impacto ambiental. Um estudo recente, realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), desfaz esse mito, no entanto. Publicado na revista científica americana “Environmental Research Letters”, o estudo mostra que, em conjunto, os 18 novos reservatórios instalados ou em construção na Amazônia podem emitir, em cem anos, até 21 milhões de toneladas de metano (CH4) e 310 milhões de dióxido de carbono (CO2), dois dos principais gases de efeito estufa, responsável pelo aquecimento do planeta.
Em outras palavras, a pesquisa revela que, nos trópicos, hidrelétricas podem ser tão ou mais poluentes que as usinas movidas por combustíveis fósseis (carvão ou gás natural), como as termelétricas. Foram estudados os empreendimentos em início de operação ou previstos para ser implementados nos próximos anos, que são Belo Monte (PA), Cachoeira dos Patos (PA), Cachoeira do Caí, Jamanxim, Jatobá, Marabá, São Luiz do Tapajós (todas no Pará), Cachoeira Caldeirão, Ferreira Gomes (Amapá), Colíder, Sinop (Mato Grosso), Jirau, Santo Antônio (Rondônia), Salto Augusto Baixo, São Simão Alto (Amazonas), São Manoel, Teles Pires (ambas na divisa MT-PA) e Bem Querer (Roraima).
O dióxido de carbono e o metano são gerados nos reservatórios pela decomposição da matéria orgânica (MO). “Na presença de oxigênio, o resultado é o primeiro; na ausência, será formado predominantemente o segundo”, explica o coordenador da pesquisa, Nathan Barros, professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da UFJF. “A MO presente na biomassa inundada ou no solo são duas importantes fontes para a decomposição. Entretanto, não são as únicas. Existem ainda a que chega ao reservatório pelo rio, ou seja, que vem da bacia de drenagem, e a que cresce nas suas margens nas épocas de seca.”
Além disso, várias pesquisas mostram que as emissões por reservatórios são governadas principalmente pela sua idade, temperatura e disponibilidade de matéria orgânica. “Os [reservatórios] da Amazônia em geral são mais quentes e têm maior disponibilidade de matéria orgânica”, diz Barros. “Isso faz com que a liberação de gases do efeito estufa daqueles lá situados seja maior e, portanto, diferente dos resultados de outros lugares, como nas regiões temperadas.”
Cenários avaliados
De acordo com ele, o que os pesquisadores fizeram foi estimar o cenário futuro de emissões, baseado em dois modelos diferentes. O primeiro, que subestima os resultados, é baseado na quantidade de biomassa no solo e na vegetação inundada, cuja quantidade foi medida em cada usina a partir de imagens de satélite. O segundo, que tende a superestimar os resultados, baseia-se nas liberações verificadas em reservatórios amazônicos que já foram estudados.
No total, foram realizadas 10 mil simulações estatísticas para cada reservatório e metodologia (superestimação ou subestimação). Esse grande número de cenários avaliados se explica pelos múltiplos fatores, como tamanho e características bioquímicas do lago e limpeza da área a ser inundada. “Para nossa surpresa, os resultados dos dois modelos foram similares, apesar da diferença metodológica de cada um”, afirma Barros. “Isso nos deu segurança para mostrar que a simulação proposta funciona para estimar as emissões futuras de usinas ainda a serem construídas.”
Segundo a pesquisa, 6 das 18 hidrelétricas analisadas – Cachoeira do Caí, Cachoeira dos Patos, Sinop, Bem Querer, Colíder e Marabá – apresentaram número significativo de simulações que apontam emissões comparáveis às de termelétricas. Para três dessas seis – Cachoeira dos Patos, Caí e Sinop –, a maioria das simulações estimou liberação de gases ainda mais alta do que as movidas a combustíveis fósseis. A de Sinop, em Mato Grosso, por exemplo, emitirá, anualmente, ao menos 250 quilos de gás carbônico equivalente por megawatt-hora (CO2eq/MWh). Apenas um dos 18 empreendimentos analisados – Ferreira Gomes (AP) – apresentou níveis de emissões praticamente nulos, semelhantes aos de usinas eólicas e solares.
Emissões comparáveis
Segundo Barros, o resultado do trabalho que mais chamou a atenção da equipe de pesquisadores foi que as emissões por energia gerada pelos lagos tradicionais (profundos e que acumulam água) são comparáveis àquelas geradas por termelétricas. “As usinas a fio d’água, que aproveitam a correnteza natural dos rios, apresentaram índice bem abaixo de outras fontes, no entanto”, diz. “Nossos dados mostram que, no que tange à liberação de gases de efeito estufa, a construção desse tipo de hidrelétrica deveria prevalecer na Amazônia. Entretanto, existe uma tendência de retorno à construção de reservatórios tradicionais na região, principalmente após as sérias crises hídricas que enfrentamos em um passado recente no Brasil.”
Apesar da gravidade dos resultados, Barros assegura que é possível reduzir a quantidade de gases produzidos pela decomposição de matéria orgânica nos reservatórios. “Isso pode ser feito por meio de políticas que controlem o uso do solo no entorno deles; cortando e retirando a vegetação que será inundada e diminuindo a quantidade de MO que chega pelos rios”, explica. “Logicamente, na maioria dos casos estamos bem longe dessa meta. Enquanto isso, nossos lagos de geração de energia poderão continuar a emitir grande quantidade de gases de efeito estufa.”
Segundo Barros, o trabalho que coordenou é fundamental para a tomada de decisão quanto à construção de reservatórios na Amazônia. “Entre vários outros impactos esperados deles, demonstramos claramente que a opção errada aumentará muito as emissões de gases do efeito estufa no Brasil”, alerta. “Além das consequências para o clima, regional e global, haverá consequências econômicas. Recentemente discute-se a inclusão das liberações de gases por lagos de hidrelétricas nos inventários nacionais, o que impacta, por exemplo, a meta de redução do Brasil no acordo de Paris.”
Os resultados da pesquisa coordenada por Barros chamaram a atenção de universidades e organismos internacionais de financiamento para construção de hidrelétricas. O grupo de pesquisa do laboratório de ecologia aquática da UFJF, do qual Barros faz parte, por exemplo, recebeu recentemente recursos, em parceria com a Universidade de Uppsala, na Suécia, para estudar reservatórios tropicais.
Recursos raros
O dinheiro vem do conselho de pesquisa da Europa (European Research Council, ERC). “Esse recurso é dificílimo de conseguir e foi dado devido ao interesse da comunidade científica mundial pelo tema”, destaca Barros. “Nosso grupo de pesquisa participa também de várias discussões e projetos sobre esse assunto no âmbito nacional e internacional.”
Nesse contexto, recentemente, ele foi convidado para trabalhar como revisor de um guia para novos empreendimentos hidrelétricos financiados por um grande banco internacional, cujo nome não pode ser revelado por causa de uma cláusula de confidencialidade. Isso quer dizer que futuramente esse organismo levará em conta o potencial de liberação de gases de efeito estufa para selecionar os empreendimentos hidrelétricos que receberão financiamento. Em outras palavras, reservatórios com potencial de grandes emissões poderão não receber recursos.
Nas simulações, três das usinas analisadas vão emitir mais gases- estufa do que as termelétricas
Em 2016, Barros também foi convidado para revisar um modelo para cálculos da liberação de gases por lagos hidrelétricos, gerado pela Associação Internacional de Hidroelétricas (IHA, na sigla em inglês). “Eles estão desenvolvendo esse modelo, que será robusto o suficiente para a avaliação das emissões por reservatórios de todo o mundo, similar ao que fizemos”, afirma. “É algo importantíssimo para tentar incluir esses ambientes nos inventários nacionais de liberação de carbono e nos relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).”
Ainda em 2016, o pesquisador brasileiro começou a participar do IPCC. O objetivo do grupo de trabalho criado é a inclusão de áreas inundadas (reservatórios são um caso) nos inventários nacionais de emissão de carbono. “Estaremos nos próximos dois anos trabalhando na próxima versão do guia para inventários antropogênicos de gases do efeito estufa, que será lançado em 2019.”