O Estabelecimento das Relações de Causa e Efeito na Perícia Médica
Editor: Sandro Azevedo
Postagem: 2019-04-30T10:10:44-03:00
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Assim como em todas as áreas da Medicina, as perícias médicas ocupam-se da relação de causa e efeito entre um fenômeno ou agente e um agravo à saúde. Talvez sem se dar conta disso ou em função do “espírito do tempo”, os conhecimentos médicos (inclusive a “medicina baseada em evidências”) têm seguido os chamados “critérios” de Bradford-Hill. Trata-se de uma série de recomendações feitas por Austin Bradford-Hill, em 1965, para permitir que se estabeleça a relação de causalidade entre doenças e o ambiente de trabalho, diferenciando o que é relação de causa e efeito do que é mera associação entre fatos próximos, no tempo ou no espaço, mas independentes.

Embora, às vezes, as sugestões de Bradford-Hill sejam consideradas critérios que precisam ser preenchidos para que se possa estabelecer um nexo de causalidade, os aspectos que ele apontou não fazem parte de uma lista de verificação cujo resultado final é somado e comparado em relação a uma tabela com valor diagnóstico ou prognóstico. Os “critérios” de Bradford-Hill inserem-se mais no campo da metodologia da ciência e da epistemologia do que no de ferramentas diagnósticas.

Dito isso, tudo o que o pequeno artigo publicado em 1965 sugeriu é aceito e exigido para que qualquer intervenção médica seja validada e aceita. Os seguintes aspectos devem ser observados para se inferir que uma doença foi causada por determinado agente nocivo:

- Força da associação

- Consistência

- Especificidade

- Temporalidade

- Gradiente biológico (curva dose-resposta)

- Plausibilidade

- Coerência

- Experiência

A força da associação é dada por meio de estudos epidemiológicos que revelam a existência de uma relação estatística entre um agravo à saúde e um determinado agente etiológico. Muitas dificuldades vistas na perícia médica (seja previdenciária, trabalhista ou indenizatória) se devem a associações estatísticas consistentes, reais, mas insuficientes para o estabelecimento do elo de causa e efeito, porque os demais aspectos descritos por Bradford-Hill permanecem vazios. Por outro lado, uma força de associação fraca não afasta necessariamente uma possível relação causal.

A consistência é bem exemplificada por estudos clínicos feitos após o lançamento comercial de um determinado medicamento (isto é, os estudos da fase IV, também chamados de “estudos da vida real”). Diferentes grupos de pesquisadores, em diversos locais, estudam diferentes estratos de pacientes em variadas situações clínicas, a fim de comparar seus resultados com os apresentados nas publicações que as agências reguladoras usaram para permitir o comércio do fármaco. Além disso, há a questão: os estudos de diferentes naturezas (bioquímicos, histológicos, em diferentes espécies animais etc.) sustentam essa associação causal?

O critério da especificidade é bem simples de ser entendido: implica investigar se o evento B sempre (ou quase sempre) é precedido pelo fato A e, da mesma forma, se ao fato A sempre (ou quase sempre) se segue o evento B ou se há um fato C que também pode anteceder B ou, ainda, um fato D que ocorre após A.

A especificidade é, na verdade, uma grande dificuldade para o médico que precisa decidir se um evento ou um agente nocivo é o causador do agravo à saúde. Como sabemos, uma mesma doença pode ter várias causas. Uma pneumonia pode ser causada por inúmeras bactérias e por alguns vírus, mas a pneumonia que determinada pessoa tem, muito provavelmente, foi causada por apenas uma bactéria ou por apenas um único vírus, e não por todos ou vários, simultaneamente.

A relação temporal é uma condição indispensável, mas está longe de ser suficiente para a vinculação de causalidade. Ela assume papel importante nas doenças (ou fenômenos) de desenvolvimento lento, pois nas doenças de evolução rápida, como nos traumas, o intervalo é curto o suficiente para que os elementos envolvidos sejam discriminados claramente. Assim, podemos nos questionar: o paciente adoeceu porque adotou certa dieta ou, de outro modo, desenvolveu determinados hábitos alimentares em função da doença? A questão temporal nem sempre aparece, mas convém tê-la em mente.

O que Bradford-Hill chamou de gradiente biológico atualmente chama-se de relação (ou curva) dose-resposta. Assim, questionamos: após uma variação de intensidade do fato A há variação proporcional no evento B? Esse critério é bastante simples e faz parte do cotidiano do médico; se uma dose de medicamento não atingiu o efeito esperado, pode-se dobrá-la ou triplicá-la, até que o resultado desejado seja obtido.

A plausibilidade de uma suposta causa é muito útil, ainda que não seja indispensável. Nas perícias médicas, é uma questão a ser considerada de duas maneiras. No primeiro modo, a relação causal alegada não é plausível, como quando um trabalhador de usinagem de peças, que não executa atividades com esforços estáticos ou dinâmicos com o antebraço, queixa-se de cervicobraquialgia, mas em quem se faz o diagnóstico de epicondilite lateral por ecografia, mesmo sem queixas e clínica desta doença.

De outro lado, a plausibilidade biológica pode ser colocada em questão quando um agravo que, mesmo provocando determinadas alterações biológicas, não foi o causador de fato. Um exemplo muito comum na medicina do trabalho é o do trabalhador que se acidentou durante uma partida de futebol (muitas vezes, no fim de semana) e, em seguida, alega que sofreu o trauma nas instalações do empregador.

A coerência descrita por Bradford-Hill assemelha-se ao que ele mesmo referiu como plausibilidade. A relação de causalidade suposta para dois fenômenos deve ser coerente com os conhecimentos científicos disponíveis (ou, ao menos, não deve contradizê-los grosseiramente). Bradford Hill cita dois exemplos de coerência entre possíveis relações de causalidade e sua coerência com o conhecimento médico disponível: os achados histopatológicos do epitélio brônquico de fumantes e a descoberta do vibrião colérico que deu suporte para a associação entre os casos de cólera e a fonte de água das pessoas adoentadas, descrita por John Snow no século XIX.

A coerência, no entanto, assim como outros aspectos de uma tentativa de causação, deve ser vista com cautela. Sua ausência não indica inexistência de causalidade, como é o caso de neoplasia de pele provocada pelo arsênico e que ocorre apenas nos seres humanos; portanto, não há dados relativos a casos em animais com os quais se pode ser coerente.

Quando possível, a experimentação é de grande valia. O controle sobre o ambiente e as condições em que os fenômenos cuja causalidade se pretende determinar fornecem informações inestimáveis sobre a força da associação, do gradiente biológico, da plausibilidade e da temporalidade. Até mesmo quase-experimentos podem determinar firmemente uma relação de causalidade.

O último aspecto a ser considerado é a analogia, que consiste no uso do conhecimento que já se tem do efeito de alguns agentes nocivos em órgãos e estruturas para inferir as consequências que outros agentes nocivos, relacionados de alguma forma aos primeiros, terão sobre esses mesmos órgãos ou estruturas. Citando o próprio Bradford-Hill: “com os efeitos da talidomida ou da rubéola diante de nós, estaremos seguros para aceitar evidências fracas, mas similares do que outras drogas ou vírus provocam na gravidez”. No Brasil, esse tipo de recurso tem sido utilizado nos estudos sobre a microcefalia causada pelo zika-vírus.

O estabelecimento de nexo causal beneficia-se muito da observação dos 9 aspectos discutidos anteriormente. O leitor atento terá percebido que em nenhum momento se falou que a legislação e os usos e costumes servem para esse tipo de conclusão. Está claro que a existência de categorias nas leis não torna fatos naturais mais ou menos verdadeiros. Assim, a “concausalidade”, o “nexo epidemiológico” ou a “classificação de Schilling”, mesmo pertencendo ao ordenamento jurídico brasileiro e tendo grande aceitação em determinados círculos sociais, falham fragorosamente, sob qualquer critério aceito cientificamente, em provar a existência da relação de causa e efeito entre agentes nocivos e agravos à saúde.

Leonardo Biscaia – Médico. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Formação em Medicina do Trabalho pela UFPR e em Gastroenterologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Sócio-fundador da Sociedade Paranaense de Perícias Médicas. Membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH). Professor da Especialização em Medicina do Trabalho da UFPR.