COVID-19: Todos os casos da doença em trabalhadores obrigados a exercerem suas atividades, devem ser considerados como relacionados ao trabalho
Editor: Sandro Azevedo
Postagem: 2020-05-18T10:32:52-03:00
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Este texto tem o objetivo de elencar argumentos em defesa da tese de que todos os casos de Covid-19, contraída por trabalhadores que foram obrigados a exercer suas atividades de trabalho fora de seus domicílios, devem ser considerados como relacionados ao trabalho.

1. Situações comuns do cotidiano podem expor as pessoas ao vírus. Como todos sabem, a Covid-19 é causada pelo vírus SARS-Cov2, que infecta as pessoas pelo contato inter-humano e pelo contato humano-superfície com a presença do vírus. Exemplos de situações que propiciam essa infecção têm sido divulgadas. Entre elas, o contato com pessoas infectadas que estejam espirrando, tossindo, falando e expelindo gotículas de saliva, o contato com superfícies quaisquer que tenham a presença do vírus, como maçanetas, botões de elevador, mesas, brinquedos, embalagens ou outros objetos. Sabe-se, também, que o vírus pode ficar suspenso no ar por períodos prolongados em ambientes fechados ou com pouca ventilação.

2. São muitos os infectados sem sintomas. Podem transmitir o vírus sem saber. Pesquisa realizado na China concluiu que 86% das pessoas infectadas não tiveram seus casos documentados. (LI e col., 2020) Embora os estudos variem quanto aos números precisos, há um consenso de que a grande maioria dos infectados é assintomática ou oligossintomática, sendo responsável pela infecção de um grande número de casos. Essa é uma das grandes dificuldades de conter a disseminação do vírus. O período de incubação pode ser longo e infectados podem transmitir o vírus sem saber. O período de incubação do vírus varia de 1 a 14 dias. Durante esse período, a pessoa está infectada sem apresentar sintomas e pode infectar outras pessoas, sem saber. Esta é outro elemento de dificuldade para conter a disseminação do vírus. (HUANG e col., 2020)

3. Medidas necessárias, mas não suficientes. Os dois aspectos iniciais justificam as orientações de restrição parcial ou total de circulação de pessoas, ventilação ambiental, distanciamento interpessoal de pelo menos 2 metros, prática da etiqueta respiratória, higienização frequente das mãos e das superfícies e uso de máscaras de pano ou de TNT por todos, para não transmitir o vírus e para ter alguma proteção se não estiver infectado.

4. Para se ampliar a restrição de circulação de pessoas é preciso dar condições para que as pessoas fiquem em casa. A amplitude da restrição de circulação de pessoas ou isolamento social nas casas depende de vários fatores, entre os quais os mais importantes são a determinação governamental para que as pessoas não saiam de casa e o oferecimento de condições para que elas possam lá permanecer, sem trabalhar ou trabalhando por meio do teletrabalho. Vão desde propiciar locais seguros para as pessoas em situação de rua ou que moram precariamente, passando por garantir o acesso ágil ao auxílio emergencial (BRASIL, 2020) até a garantia de assistência integral à saúde, com o acompanhamento do estado de saúde da população por meio das ações fundamentais da atenção básica e da assistência social, até, quando necessário, a internação hospitalar e a oferta de leitos de terapia intensiva.

5. Medidas no Brasil até agora são desencontradas e insuficientes. Desde o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19, passaram-se mais de 2 meses. Efetivamente, as medidas tomadas pelos governos não atendem às necessidades da população, à contenção da disseminação rápida do vírus e à assistência universal e integral à saúde. Não há comando nacional que paute suas orientações e ações baseadas em conhecimentos científicos, e persiste um claro conflito entre diretrizes confusas do governo federal e as emanadas pelos governos estaduais e municipais. O auxílio emergencial, insuficiente por si só, mas imprescindível para as pessoas mais carentes, não tem efetivamente chegado às suas mãos. São atrasos inexplicados, problemas no sistema informatizado, burocracias intransponíveis que ameaçam a débil situação de vida de milhões de pessoas, que desesperadas correm às agências da Caixa Econômica Federal (CEF) em filas longas e apertadas, arriscando-se e colocando em risco os bancários, que tampouco podem resolver problemas relacionados aos desmandos governamentais. Não há contratações de profissionais, nem oferta de recursos materiais suficientes para o Sistema Único de Saúde (SUS), que, precarizado há anos, tem encontrado dificuldades para dar a assistência necessária à população, ainda que esteja sendo fundamental no processo de enfrentamento da pandemia.

6. Quem está trabalhando fora de casa, o faz por necessidade e não por desejo. Nesse contexto, trabalhadores de atividades essenciais e mesmo de atividades não essenciais saem diariamente e têm sido expostos a situações que propiciam a contaminação pelo SARS-Cov2. São convocados para trabalhar! Exemplos de atividades não essenciais que continuam sendo executadas, mesmo que com algum grau de restrição, com horários diferenciados e limite de pessoas a entrarem nos recintos fechados, são manutenção de calçadas e ruas, obras e funcionamento de estabelecimentos de construção civil e material elétrico, comércio de roupas. As situações e locais de exposição dos trabalhadores são no transporte coletivo, nas vias públicas e no local de trabalho.

7. Covid-19 em quem trabalha é presumivelmente relacionada ao trabalho. Pelos aspectos levantados, estamos convictos de que temos elementos que fundamentam a tese de que a Covid-19 é uma doença presumivelmente relacionada ao trabalho, quando acomete pessoas que saem de casa para trabalhar, pois estão compulsoriamente expostas ao contato inter-humano e ao contato com superfícies eventualmente contaminadas, a despeito do uso de máscaras ou de outros equipamentos de proteção individual, que não proporcionam proteção total. Em documento orientador de medidas a serem tomadas nos locais de trabalho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica as exposições de risco ocupacional em graus baixo, médio e alto (OMS, 2020). Pode-se afirmar que todos os trabalhadores que utilizam condução coletiva já estão excluídos do grupo de baixo risco ocupacional, e a grande maioria, se não a totalidade, se enquadra nos riscos médio e alto. Mas, e se forem oferecidas todas as formas de proteção no trabalho? Nenhum estudo demonstrou a possibilidade de proteção total nos locais de trabalho, até porque há possibilidade de ter infectados assintomáticos, lembrando que a oferta de exames laboratoriais em nosso país ainda é muito pequena e insuficiente para sua detecção. O mesmo vale para o transporte coletivo. E se outras pessoas da casa tiverem também Covid-19? A resposta pode ser dada com outra pergunta: quem pegou de quem? Não é possível determinar. Alguém que saia de casa e tome ônibus, metrô ou taxi e/ou tenha contato com colegas pode afirmar ou deixar de afirmar que teve contato com pessoa infectada? Não, exceto nos casos em que há diagnóstico já feito. Mas, os contatos com infectados assintomáticos não são identificáveis. O trabalhador pode se recusar a trabalhar fora de casa quando convocado pela empresa? Sim, em tese. Na vida real, será muito raro que alguém exerça o seu direito legal de recusa ao trabalho que julgar de risco grave ou iminente. Portanto, parte fraca de uma relação inequivocamente desigual, que é a existente entre empregador e empregado, o trabalhador que estiver trabalhando fora de sua casa, estará cumprindo ordens e, com isso, aumentando significativamente o risco de adoecer.

8. Profissionais de saúde são um capítulo à parte e têm que ser protegidos especialmente. Os profissionais de saúde, incluídos os de limpeza e segurança das unidades de saúde e dos serviços funerários, têm merecido destaque de mídia por motivos óbvios, mas também para eles a proteção oferecida pelo poder público é insuficiente. São pelo menos 70 médicos e 108 profissionais de enfermagem mortos por Covid-19 até este momento – soldados que tombaram no combate na linha de frente desta guerra. Mortes que, em boa parte, poderiam ter sido evitadas e cuja relação com o trabalho salta à vista.

9. Endemia não é epidemia. Um dos argumentos para a tentativa de descaracterizar a Covid-19 como doença ocupacional é a evocação da Lei 8.213/91, no item d, do parágrafo 1º do incido II do artigo 20, no qual se diz que “não são consideradas como doença do trabalho a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho” (FIESP, 2020). A endemia se caracteriza pela presença de uma determinada doença em uma região de forma constante. No Brasil, para citar um exemplo, a malária é considerada endêmica na Amazônia, porque atinge muitas pessoas de forma habitual, o que é considerado “normal” para a região. Epidemia é outra coisa. Acontece quando há a ocorrência de uma determinada doença em grande número de pessoas em tempo curto, de forma crescente, significativamente acima do habitual. A Covid-19 atinge inúmeros países, nos diferentes continentes, e por isso é considerada uma pandemia. Atinge de maneira epidêmica; assim, o que temos é uma epidemia no mundo. Portanto, não há qualquer fundamentação conceitual no argumento de que a Covid-19 não é doença ocupacional por se enquadrar no referido item da Lei 8213/91 mencionado. Vale lembrar que esta mesma lei equipara a acidente de trabalho a “doença proveniente de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade”.

10. A manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF). O STF, ao revogar o Art. 29, da Medida Provisória 927, que estabelecia que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”, inverte o ônus da prova, que deixa de ser obrigação da vítima(6) . Outra questão legal importante é a revogação da Medida Provisória 905/19, que havia extinguido o acidente de percurso (7) . Como consequência, a eventual contaminação ocorrida durante o deslocamento, principalmente se usado o transporte coletivo, pode gerar presunção de nexo causal.

11. Implicações do reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional. O reconhecimento da Covid-19 como doença relacionada ao trabalho auxilia no reconhecimento do processo de trabalho como fonte de infecção e adoecimento, independentemente da existência de vínculo empregatício formal. Assim, todos os casos de Covid-19 em pessoas que saiam de casa para trabalhar devem ser notificados ao SUS como doença relacionada ao trabalho. Aos servidores públicos e aos trabalhadores do setor privado são devidos direitos de diferentes ordens, e por isso devem ter suas doenças registradas como relacionadas ao trabalho nos órgãos previdenciários, por meio dos instrumentos definidos em cada caso. Aos trabalhadores contribuintes do Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), são devidos um ano de estabilidade no emprego, nos casos que ensejarem afastamento por mais de 15 dias, e recolhimento do fundo de garantia durante o período de inatividade laboral, além de ter o tempo considerado para fins de aposentadoria. Assim, esses trabalhadores devem ter a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), nos casos de suspeita ou doença confirmada, preferencialmente com diagnóstico de Covid-19, com os códigos a seguir: U07.1 – Covid-19, vírus identificado ou U07.2 Covid-19, vírus não identificado (OMS, 2020a).

12. O justo reconhecimento pelo risco aumentado. O inequívoco aumento do risco de contaminação pelo vírus, decorrente da obrigação de se trabalhar fora dos limites da própria residência, que acomete os trabalhadores submetidos a esta situação, e as características do SARS-Cov 2 e sua forma de disseminação, são suficientes para que se presuma que o adoecimento pela Covid-19 está relacionado ao trabalho, cabendo o ônus da prova àqueles que defenderem o contrário. Aos trabalhadores acometidos devem ser garantidos todos os direitos legais decorrentes desse reconhecimento.

São Paulo, 15/05/2020

Por:

Maria Maeno: Médica/USP, Mestre e Doutora em Saúde Pública/USP. Pesquisadora em Saúde do Trabalhador.

José Carlos do Carmo: Médico/USP, Mestre em Saúde Pública/USP. Especialização em Medicina do Trabalho.