O mundo do trabalho vem passando nas últimas décadas por substanciais mudanças, seja no seu epicentro europeu, seja na periferia do capitalismo, onde se situam países como o Brasil, todos sendo conduzidos em direção a precarização desse mundo. Segundo Giovanni Alves, “o processo de precarização do trabalho e a constituição do precário mundo do trabalho são traços do novo sócio-metabolismo do capital nas condições da mundialização financeira”. (Giovanni Alves. Dimensões da Reestruturação Produtiva: Ensaios de Sociologia do Trabalho. 2ª edição. Editora Praxis, 2007).
Essa “mundialização financeira” é conduzida pelo neoliberalismo que tem provocado significativas avarias no tecido social da sociedade contemporânea, não deixando incólumes nem mesmo os países que se situam no centro do capitalismo, acertando em cheio os direitos sociais, no cerne dos quais se encontram os direitos trabalhistas. Jorge Nóvoa, comentando o livro da dupla de pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval, assevera o seguinte:
“Por múltiplos caminhos, o neoliberalismo se impôs como a nova razão do mundo, não deixando incólume nenhuma esfera da vida. O que se acha em causa é a forma de existência na modernidade última. Sua norma fundamental é a competição mortífera modelando tudo da vida social introjetada na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado”. (Pierre Dardot e Christian Laval. A Nova Razão do Mundo – Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. Boitempo Editorial, 2016).
O neoliberalismo vem promovendo historicamente uma desagregação do tecido social, enfraquecendo as mobilizações coletivas, submetendo todos à lógica da concorrência em todos os níveis. Assim, segundo Pierre Dardot e Christian Laval:
“As formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de subjetivação”. (Pierre Dardot e Christian Laval. A Nova Razão do Mundo – Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. Boitempo Editorial, 2016).
O processo de precarização do trabalho, portanto, vem como conseqüência dessa onda neoliberal, que tem varrido o mundo nas últimas décadas e aportou entre nós, de modo explícito e despudorado, a partir do início dos anos 90, com o governo de FHC, e acentuou-se com as famigeradas privatizações promovidas por ele, nos fins dessa década, as quais já foram objeto de muitas críticas e de suspeitas graves de prevaricação.
Depois de uma década e meia de avanços na seara dos direitos sociais, cujo período mais promissor se deu entre os anos de 2003-2010, o Brasil, a partir do governo ilegítimo do presidente Temer, retomou, de forma açodada, a pauta neoliberal com ataques sistemáticos aos direitos sociais, produzindo estragos de monta aos direitos trabalhistas, com a edição de leis que suprimiram ou feriram de morte muitos desses seculares direitos. A Consolidação das Leis do Trabalho foi erigida à condição de vilã, a ela sendo atribuída a pecha de arcaica, atrasada, ultrapassada e corporativa.
O direito do trabalho resultou de uma longa história de lutas e reivindicações, que se travaram nos mais diferentes países, cujos primórdios se situam no bojo da Revolução Industrial, em enfrentamento às deletérias e degradantes condições de trabalho e vida, a que era submetida a classe trabalhadora.
Registra-se no Brasil, igualmente, um passado de embates, enfrentamentos, reivindicações e conquistas dos trabalhadores brasileiros, cujo ápice foi a instituição, no início da década de 40 do século passado, de uma legislação (CLT) protetiva da classe trabalhadora, que apesar de críticas procedentes que possam a ela ser dirigidas, não lhe podemos retirar os inumeráveis méritos, que possuía e possui ainda hoje.
Há muito, determinados setores empresariais vêm dirigindo ataques reiterados ao arcabouço legal de proteção aos direitos da classe trabalhadora, assumindo uma posição de “’vítimas” face à suas normas, as quais “inviabilizariam”, segundo alegam, o exercício de suas atividades. Sabemos que o conflito Capital X Trabalho tem suas raízes mergulhadas nas origens do Capitalismo e vem acompanhando todas as suas fases, cíclicas e sazonais.
O governo Temer assumiu o compromisso com o desmonte desse arcabouço legal de proteção aos direitos sociais trabalhistas, devendo promover seu desmantelamento na maior brevidade possível, devido ao pouco tempo que teria a sua disposição para tal mister. No seu exíguo e, paradoxalmente, interminável mandato, Michel Temer, contando com o servil apoio do parlamento brasileiro, tão devotado à causa dos poderosos, conseguiu produzir avarias substanciais aos aludidos direitos.
Sua primeira ofensiva contra os direitos dos trabalhadores foi a edição da Lei 13.429/2017, que transformou a “terceirização”, até então restrita às “atividades meio” das empresas, em regra para contratação de empregados para suas “atividades fim”. A terceirização, que já fora, há décadas, objeto de criticas, mesmo quando restrita às “atividades meio” das empresas, passou a gozar de irrestrita existência desde a entrada em vigor da iníqua lei, supra mencionada.
A terceirização, nos moldes da lei anterior (Lei 6019/74), já produzia em elenco de resultados perversos e nocivos aos trabalhadores. Como constatam Ricardo Antunes e Graça Druck:
“As informações levantadas por pesquisas realizadas em todo o país nos últimos 20 anos evidenciam de forma unânime a indissociabilidade entre terceirização e precarização do trabalho, tanto em investigações de natureza qualitativa, através de estudos de casos, quanto quantitativas, com o uso de estatísticas de fontes oficiais ou de instituições sindicais e do direito do trabalho”. (Ricardo Antunes e Graça Druck. A terceirização sem limites: a precarização do trabalho como regra. O Social em Questão – Ano XVIII – nº 34 – 2015).
Agora, nos moldes irrestritos autorizados pela Lei 13.429/2017, os efeitos nocivos serão agravados e amplificados, extraordinariamente, levando mais água ao moinho da precarização do trabalho. Nessa linha de raciocínio informam-nos Ricardo Antunes e Graça Druck :
“Em todas as dimensões e tipos de precarização do trabalho no Brasil, a terceirização está presente como fenômeno central, através do qual se demonstram as diferentes faces da precarização”. (Ricardo Antunes e Graça Druck. A terceirização sem limites: a precarização do trabalho como regra. O Social em Questão – Ano XVIII – nº 34 – 2015).
A terceirização ainda tem como efeito colateral exacerbar a instabilidade das relações de trabalho, como denunciam Ricardo Antunes e Graça Druck:
“O tempo de permanência na empresa, isto é, a rotatividade, cujas taxas no Brasil para todos os trabalhadores é uma das mais altas do mundo, no caso dos terceirizados em “serviços tipicamente terceirizáveis”, a média de permanência é de 2 anos e 7 meses, enquanto para os demais trabalhadores é de 5 anos e 8 meses”. (Ricardo Antunes e Graça Druck. A terceirização sem limites: a precarização do trabalho como regra. O Social em Questão – Ano XVIII – nº 34 – 2015).
Contudo, Temer teve tempo ainda, infelizmente, de afligir outro golpe, quase mortal, aos direitos dos trabalhadores, com a aprovação da desditosa “Reforma Trabalhista”, por meio da Lei 13.467/2017.
Dentre as “novidades” dessa reforma está a instituição do “trabalho intermitente”. Aludida pérola da perversidade criativa está disciplinada no artigo 443 da CLT.
Na verdade não se pode culpar o governo Temer e seus acólitos de criatividade, quando viabilizaram entre nós a malfazejo “trabalho intermitente”. Foram buscar inspiração no centro do capitalismo neoliberal, como nos informa Ricardo Antunes:
“A instabilidade e a insegurança são traços constitutivos dessas novas modalidades de trabalho. Vide a experiência britânica do zero hour contract [contrato de zero hora], o novo sonho do empresariado global. Trata-se de uma espécie de trabalho sem contrato, no qual não há previsibilidade de horas a cumprir nem direitos assegurados. Quando há demanda, basta uma chamada e os trabalhadores e as trabalhadoras devem estar on-line para atender o trabalho intermitente.” (Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital. Boitempo Editorial, 2018).
As lesões aos direitos dos trabalhadores, materializadas na Lei 13.467/97, não se restringem ao execrável “trabalho intermitente”. Abre-se, igualmente, com essa legislação, a possibilidade de mulheres gestantes trabalharem em ambientes insalubres, a teor do consignado no seu artigo 394-A. São apenas dois exemplos execrandos, em meio a muitos outros, disseminados pelo texto legal. Vários princípios e regras, que têm dado sustentação a tais direitos dos trabalhadores, foram terrivelmente maculados. A correlação de forças entre Capital e Trabalho foi terrivelmente abalada, com a legislação atual pendendo, com impudor e ostensivamente, em favor do capital. A legislação trabalhista sempre teve um claro viés de proteção ao trabalhador. Todavia, inverte-se essa equação com a edição dessa injusta lei.
A pilhagem aos direitos dos trabalhadores ganhou novo fôlego com a ascensão ao poder do governo Bolsonaro e seu projeto ultraliberal, gerido e conduzido pelo “Super Ministro” da Economia Paulo Guedes, mais conhecido como um dos “Chicago Boys”.
Na seara do trabalho, que nos ocupa por ora, o desmonte começou pela extinção do Ministério do Trabalho, órgão com décadas de existência, tendo sobrevivido até mesmo à ditadura militar. Há todo um simbolismo por detrás de uma medida como essa. Esse ministério incomodava muita gente, como os elefantes daquela canção, principalmente aqueles “empresários”, notórios e contumazes transgressores da legislação obreira. Geralmente seus nomes figuram nas listas dos socialites, dos cidadãos honorários e, igualmente, na lista “TIP”, que elenca as piores formas de trabalho infantil. Também costumam figurar na lista dos que se utilizam de trabalho análogo à escravidão. Como se pode vê, gente da melhor estirpe.
Para que um “Ministério do Trabalho”? Ele era apenas um órgão administrativo federal, responsável por regulamentar e fiscalizar todos os aspectos referentes às relações de trabalho no Brasil, aplicando multas aos infratores das normas trabalhistas! Ora! Polícia para quem precisa de polícia, Ministério do Trabalho para quem precisa defender direitos dos trabalhadores! Realmente é inócuo e dispendioso, fazendo a União desembolsar polpuda verba orçamentária para sua manutenção, a qual seria mais bem aplicada nos interesses no sacrossanto empresariado nacional. Agora, que não temos mais direito do trabalho, não faz mesmo nenhum sentido, realmente, mantermos tal ministério.
Como nos ensinam Ricardo Antunes e Graça Druck:
“Assim, a informalidade deixa de ser a exceção para tendencialmente tornar-se a regra, e a precarização passa a ser o centro da dinâmica do capitalismo flexível, se não houver contraposição forte a este movimento tendencial de escala global.” (Ricardo Antunes e Graça Druck. A terceirização sem limites: a precarização do trabalho como regra. O Social em Questão – Ano XVIII – nº 34 – 2015).
O vocábulo “flexibilidade” ganhou status de vedete do neoliberalismo sicário, produzindo corpos maleáveis, trabalhadores transformados em exímios contorcionistas pela sobrevivência. Como nos ensina Sadi Dal Rosso:
“A flexibilidade transformaria os momentos da vida, sem necessariamente diminuir a duração da jornada de trabalho. Os negócios desejam trabalhadores flexíveis para melhor se estruturar, para ajustar desencontros entre oferta e procura, para elevar o nível de intensidade laboral com vistas a alçar o rendimento do trabalho e assim superar a competição, para impedir tempos perdidos e evitar gastos de contratação de mão de obra em tempo contínuo, para produzir, mediante o emprego de trabalho flexível, muito mais valor do que alcançava com o emprego de trabalho em jornadas longas, fixas, repetitivas, de tempo integral.” (Sadi Dal Rosso. O Ardil da Flexibilidade – Os Trabalhadores e a Teoria do Valor. Editora Boitempo, 2017).
Com a gradativa e contínua destruição do trabalho formal, com carteira assinada e os direitos sociais dela decorrentes, o que sobra é uma desoladora precarização das condições de vida e existência da classe trabalhadora.
Parece-nos que o governo Bolsonaro, dando continuidade ao trabalho inescrupuloso de seu antecessor, se mostra predisposto a nos fazer viajar em busca daquele tempo perdido dos primórdios da Revolução Industrial, de triste memória, dando curso e aprofundando a aniquilação dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários.
Tristemente palavras como flexibilização, terceirização, informalidade, tornam-se cada vez mais freqüentes no mundo do trabalho contemporâneo e, principalmente, no Brasil.
Ricardo Antunes nos põe em contato com a desoladora realidade vivenciada hoje no mundo do trabalho, propiciada pelo neoliberalismo triunfante, na sua veste financeirizada, com a qual se apresenta de um tempo a essa parte, com um potencial devastador para aqueles que vivem e dependem do trabalho para viver:
“As corporações se aproveitam: expande-se a “uberização”, amplia-se a “pejotização”, florescendo uma nova modalidade de trabalho: o escravo digital. Tudo isso para disfarçar o assalariamento. Apesar de defender a “responsabilidade social e ambiental”, incontáveis corporações praticam mesmo a informalidade ampliada, a flexibilização desmedida, a precarização acentuada e a destruição cronometrada da natureza. A exceção vai se tornando regra geral. Aqui e alhures.” (Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital. Boitempo Editorial, 2018).
Diante desse cenário a conclusão a que chega Ricardo Antunes não é nada alentadora:
“Um grupo cada vez mais minoritário estará no topo dos assalariados. Entretanto, a instabilidade poderá levá-lo a ruir face a qualquer oscilação do mercado, com seus tempos, movimentos, espaços e territórios em constante mutação. A esses se somam ainda uma massa de “empreendedores”, uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo.” (Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital. Boitempo Editorial, 2018).
O quadro esboçado até aqui tem íntima relação com a lógica econômica do neoliberalismo, reitere-se mais uma vez, que está a impor aos trabalhadores, em escala planetária, sacrifícios que põem em risco sua própria sobrevivência.
Somos levados a crer, como sociedade, não sem uma grande dose de ideologia na veia, que sacrifícios são absolutamente necessários para manter a competitividade econômica e a conservação da própria sociedade.
A questão social subjacente à precarização do mundo do trabalho já atinge os países centrais do capitalismo financeiro. Haja vista os protestos dos “coletes amarelos” que seguem incendiando a França. A pauta social das reivindicações neste país, como aqui, converge para a defesa de vários direitos sociais que viam sendo solapados pela onda neoliberal.
O psicanalista Christophe Dejours, há duas décadas, já identificava o sofrimento causado à classe trabalhadora com o implemento das políticas econômicas neoliberais:
“O sofrimento aumenta porque os que trabalham vão perdendo gradualmente a esperança de que a condição que hoje lhes é dada possa amanhã melhorar. Os que trabalham vão cada vez mais se convencendo de que seus esforços, sua dedicação, sua boa vontade, seus “sacrifícios” pela empresa só acabam por agravar a situação. Quando mais dão de si, mais são “produtivos”, e quanto mais procedem mal para com seus companheiros de trabalho, mais eles os ameaçam, em razão mesmo de seus esforços e de seu sucesso. Assim, entre as pessoas, comuns, a relação para com o trabalho vai-se dissociando paulatinamente da promessa de felicidade e segurança compartilhadas: para si mesmo, primeiramente, mas também para os colegas, os amigos e os próprios filhos.” (Christophe Dejours. A Banalização da Injustiça Social. Editora Fundação Getúlio Vargas, 7ª edição, 2007).
Em decorrência da situação que estamos a descrever, que afeta de morte o mundo do trabalho, tem aumentado, epidemicamente, os adoecimentos de trabalhadores, aqui e alhures, com graves consequências físicas e psíquicas. Para ilustrar tal assertiva nos valemos, mais uma vez, da análise do psicanalista Christophe Dejours: “Indubitavelmente, quem perdeu o emprego, quem não consegue empregar-se (desempregado primário) ou reempregar-se (desempregado crônico) e passa pelo processo de dessocialização progressivo, sofre. É sabido que esse processo leva à doença mental e física, pois ataca os alicerces da identidade. Hoje, todos partilham um sentimento de medo – por si, pelos próximos, pelos amigos ou pelos filhos – diante da ameaça de exclusão”. (Christophe Dejours. A Banalização da Injustiça Social. Editora Fundação Getúlio Vargas, 7ª edição, 2007).
Com o fim do trabalho formal, como conhecíamos até aqui, vão surgindo em substituição a ele formas deletérias do mesmo, que mascaram o que a pouco concluiríamos ser formas de trabalho subordinado, com todos os seus consectários.
Um dos exemplos mais visíveis das metamorfoses da relação de trabalho, travestida de autonomia e empreendedorismo, é o do Uber, que se disseminou, em metástase, por todo o mundo ocidental, em todas as suas principais cidades do ocidente.
O momento em que vivemos, nada alvissareiro, marcado pela hegemonia do neoliberalismo e de suas práticas, de sua lógica e de suas consequências malévolas para o homem e a sociedade, para o trabalho e o trabalhador, não nos pode impedir de encará-lo sob um perspectiva histórica. A história é pendular, levando as sociedades, no seu movimento, para espectros antagônicos do arco ideológico. Sendo assim, as coisas são passiveis de mudanças. Para tanto se faz necessário que desenvolvamos uma capacidade coletiva de articulação, que incida sobre a política, através de lutas, de movimentos, de experiências, da tomada de consciência, que nos conduza a um sistema de práticas que se oponham à “racionalidade neoliberal”, que estaria na raiz das metamorfoses pela quais passa o conturbado mundo do trabalho nos dias de hoje.
Como disse certa vez Martin Luther King Jr.: “Precisamos começar rapidamente a mudança de uma sociedade voltada para as coisas para uma sociedade voltada para as pessoas. Quando as máquinas e os computadores, fins lucrativos e direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, é impossível derrotar os trigêmeos gigantes do racismo, do materialismo e do militarismo”. (Beyond Vietnam, 1967. In: Naomi Klein. Não basta dizer não. Bertrand Brasil, 2017).
Carlos Eduardo Araújo é mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).