Sintomas Psicossomáticos e a Organização do Trabalho
Editor: Sandro Azevedo
Postagem: 2020-06-22T22:25:20-03:00
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A ideia de que o nosso corpo pode adoecer em consequência de problemas emocionais é um assunto que ganha cada vez mais espaço nos estudos contemporâneos. É preciso considerar que a saúde e a doença são estados que resultam do equilíbrio harmônico ou da desregulação dos campos mente, corpo e meio externo. Muitos indivíduos, todavia,  só conseguem manter seu equilíbrio e obter satisfações afetivas graças ao trabalho, porém, da mesma forma que o trabalho pode contribuir para o desenvolvimento humano, pode também significar uma escravidão ou um persistente sofrimento mental.

As emoções que afetam o indivíduo no ambiente de trabalho decorrentes do choque com a organização do trabalho e que podem gerar doenças vem a ser definidas como doenças psicossomáticas. A palavra psicossomática é um termo tirado de psique (denotando mente, processos mentais, e atividades emocionais) e somático (soma, significando corpo e algo distinto da mente).

Estudos explicam que se trata de uma reação da tensão, uma resposta para as circunstâncias do meio ambiente percebidas pelas pessoas como ameaçadoras. As somatizações podem ser definidas também como o processo através do qual conflitos profundos do âmbito psíquico, uma vez não resolvidos satisfatoriamente, usam a via corporal para conhecer um necessário alívio, levando a transtornos manifestados no corpo.

As doenças psicossomáticas representam um mecanismo defensivo no qual o trabalhador converte o problema psicológico em fisiológico, e isso representa a reação adaptativa à ansiedade experimentada no trabalho. A insatisfação em relação com o conteúdo significativo da tarefa gera um sofrimento, cujo ponto de impacto é, antes de tudo, mental, em oposição ao sofrimento resultante do conteúdo ergonômico da tarefa.

Em se tratando do impacto causado pelo trabalho, salientamos o fator organização do Trabalho como um dos fatores mais significativos na vida de um trabalhador. A organização do trabalho, pode, em certos casos, entrar em choque com questões subjetivas do trabalhador e comprometer o equilíbrio psicossomático. Quanto mais rígida for a organização do trabalho, menos ela facilitará estruturações favoráveis ao psicossoma individual. A organização do trabalho é causa de uma fragilização somática, na medida em que ela pode bloquear os esforços do trabalhador para adequar o modo operatório às necessidades de sua estrutura mental.

A teoria freudiana ressalta o papel do conflito na existência humana. Nosso organismo e nossa existência, bem como as relações do homem com a natureza e com seus semelhantes, são permanentemente marcados pela contraposição de forças, de interesses, de necessidades, de processos fisiológicos. É no âmbito de tais conflitos que somos concebidos e gestados. É a partir deles que passamos a existir, que nos desenvolvemos, que nos constituímos. Para cada indivíduo, as diferentes soluções encontradas em face de conflitos experimentados ao longo de sua vida, ou em um momento particular desta, determinam o bem-estar ou o adoecer.

O conceito de psicossomática evoluiu para o estudo da pessoa como ser histórico, que é um sistema único constituído por três subsistemas: corpo, mente e social. Desta forma, passa-se a entender o corpo como expressão do constante contato com o mundo externo, portanto, falar de psicossomática é referir-se a sintomas, doenças e queixas físicas ligadas ao psíquico.

O conceito de sintoma passou por uma grande revolução com o advento da psicanálise, tendo a evolução de sua definição com os estudos de Freud sobre a histeria. No sintoma psicossomático, o corpo é acometido, as tensões recaem sobre ele ou não se derivam adequadamente. Ele não se torna impotente ou inibido, mas entra em sofrimento e pode desorganizar-se gravemente. O sintoma psicossomático aparece como uma impossibilidade ou como uma tentativa de interferência no processo.

Desta forma, pode-se atribuir ao sintoma psicossomático à manifestação de algo que está escondido, de algo que é muitas vezes até desconhecido, e, não conseguindo outra forma de vir à tona, vem através do corpo, em enfermidade. É  um erro perigoso achar que só o histérico tem o dom de ficar doente para atender a algum propósito. Qualquer pessoa possui essa capacidade e qualquer uma a aplica em tão grande extensão que nem sequer consegue imaginar. Na realidade, existe interação recíproca entre múltiplos fatores envolvidos na causalidade das doenças, como por exemplo, o potencial patogênico do agente agressor, a suscetibilidade do organismo e o ambiente.

A vivência do corpo é a vivência de impulsos, sentimentos, pensamentos, movimentos, é viver a consciência do ser. O corpo é o sujeito e o objeto do desejo. É a casa do simbólico. Para os fenomenologistas não há dicotomia, pois o psiquismo é corpo vivido e sentido.

Dentre o número extenso de sintomas existentes, destacam-se primeiramente os sintomas decorrentes das funções dos órgãos. Aqueles que são resultantes das alterações das funções das fibras musculares lisas poderiam provocar no aparelho digestivo: vômitos, diarreia, prisão de ventre, alterações da motilidade do estômago e intestino; no aparelho respiratório: asma, bronquite; no aparelho genito-urinário: dor ao urinar, cólicas renais, aumento da frequência urinária, vaginismo, ejaculação precoce, cólicas menstruais; do aparelho circulatório: hipertensão arterial, enxaqueca, cefaleia de tensão; na pele: neurodermites, eczemas, pruridos. Caso a alteração da função for predominantemente secretora, manifestam-se modificações na produção de muco, da secreção das glândulas endócrinas, na produção de hormônios do aparelho digestivo, da secreção pancreática, biliar e entérica. Quando há significação da função de irrigação dos órgãos, percebe-se diminuição da resistência da mucosa a agentes agressivos, podendo resultar em hemorragias e ulcerações.

A dor pode apresentar-se como um dos sintomas mais comuns. É defendido por inúmeros estudos, que a dor pode manifestar-se em três níveis. No primeiro ela constitui um sinal registrado pelo ego de que se acha em curso uma ameaça à integridade estrutural ou funcional do organismo. No segundo nível, ao verificar-se que a experiência pode ser repartida, isto é, comunicada a outra pessoa, faz da dor um meio básico de pedir ajuda. Num terceiro e último plano, a dor não mais denota uma referência ao corpo, mas pode, expressar queixa, ataque, aviso de perda iminente do objeto. Neste último nível a dor pode ser utilizada como forma de manipular os outros, ganhar o controle sobre eles, ou então, já um outro plano, como forma de aliviar a culpa por alguma falta real ou imaginária cometida anteriormente.

Assim como a ansiedade é o afeto mobilizado na dor aguda, a depressão pode surgir como fenômeno secundário à dor crônica.

A fadiga, é simultaneamente psíquica e somática. É psíquica porque corresponde a um obstáculo para o psicossomático; e também por ser uma vivência subjetiva. Mas é também, e principalmente, somática, porque sua origem está claramente no corpo. O que pode parecer estranho é que não corresponde a um esforço muito grande dos órgãos do corpo, mas a uma repressão da atividade espontânea desses órgãos (motores e sensoriais).

A fadiga não provém somente da sobrecarga de um órgão ou de um aparelho. A fadiga pode encontrar sua origem também na inatividade. Essa inatividade é fatigante porque não é um simples repouso, mas, ao contrário, uma repressão, inibição da atividade espontânea.

Os distúrbios do sono talvez sejam alguns dos sintomas mais comuns que uma pessoa pode apresentar quando passa por uma situação ou exige dela mais esforço. Esse distúrbio é dividido em: dificuldade em iniciar e manter o sono (insônia), sonolência excessiva, distúrbios do padrão sono-vigília, parassonias.

O estresse associa-se de formas variadas a todos os tipos de trabalho, prejudicando não só a saúde, mas também o desempenho dos trabalhadores. Por mais incrível que pareça,  o estresse já representa uma das principais causas de incapacitação para o trabalho. As evidências são claras, por exemplo, quanto à associação entre estresse ocupacional e doenças cardiovasculares, hipertensão, úlcera péptica, doenças inflamatórias intestinais e até mesmo distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT), os quais representam, no Brasil, uma das principais causas de pedidos de afastamento do trabalho ao sistema previdenciário.

O estresse é visto como qualquer força que conduz um fator psicológico ou físico, além de seu limite de estabilidade, produzindo uma tensão no indivíduo.  As reações de estresse, resultam dos esforços de adaptação. Caso a reação ao fator agressor for muito intensa ou se o agente do estresse for muito potente ou prolongado, poderá haver como consequência, doença ou maior predisposição ao desenvolvimento de doença.

O conceito de burnout é considerado um dos desdobramentos mais importantes do estresse profissional. A síndrome de burnout tem o sentido do preço que o profissional paga por sua dedicação ao cuidar de outras pessoas, ou de sua luta para alcançar uma grande realização. O burnout é o fruto de situações de trabalho que têm como objeto de trabalho, o contato com outras pessoas. É a resposta emocional a situações de estresse crônico em função de relações intensas com outras pessoas que apresentam grandes expectativas em relação a seus desenvolvimentos profissionais e dedicação à profissão, e que, no entanto, em função de variados obstáculos, não conseguiu alcançar o retorno esperado.

As lesões por esforço repetitivo (LER), constitui-se em importante patologia no contexto organizacional e das relações entre estresse e trabalho. E, apesar das lesões por esforços repetitivos serem mais evidentes na atualidade, o surgimento dos primeiros casos documentados, remonta ao ano de 1700, registrados pelo médico italiano Bernardino Ramazzini, que angariou o epíteto de pai da Medicina do Trabalho.

O quadro mais frequente da LER é uma dor não definida, de intensidade variável, que nem sempre é bem localizada, embora sinais e sintomas inflamatórios em articulações da mão e punho, possam ser encontrados. É comum encontrarmos pessoas que sofrem desta patologia e que já se submeteram a inúmeros tratamentos, mas frequentemente os resultados foram bastantes frustrantes, porque não trouxeram alívio dos sintomas de forma substancial.

O trabalho tem um papel central na vida das pessoas, e, principalmente, na sociedade moderna, quando um grande dispêndio do tempo das pessoas é em função disto, ou, se preparando através de estudos e treinamento para conseguir algum trabalho ou promoção. O indivíduo está ligado à organização moderna, não apenas por laços materiais e morais, por vantagens econômicas e satisfações ideológicas que ela lhe proporciona, mas também por laços psicológicos. A organização tende a se tornar, portanto, fonte de sua angústia e de seu prazer, além do mais, a falta de sentido no desenvolvimento do trabalho, pode levar o indivíduo a um grave sofrimento psíquico.

Ao vivenciar o conflito decorrente da organização do trabalho, o funcionário pode, mesmo sofrendo, atuar em um espaço que lhe possibilita a realização de ações benéficas para a produção e para a manutenção de sua saúde, caracterizando-se, assim, o sofrimento criativo.

Por outro lado, há a ocorrência do sofrimento patogênico, oriundo da inexistência de espaço para a busca de soluções favoráveis de superação do sofrimento, nem para a utilização de defesas psíquicas.  Quanto mais a organização do trabalho é rígida, mais a divisão do trabalho é acentuada, menor é o conteúdo significativo do trabalho, e menores são as possibilidades de mudá-lo. Consequentemente, o sofrimento aumenta.

E assim, do choque entre um indivíduo, dotado de uma história personalizada, e a organização do trabalho, portadora de uma injunção despersonalizante, emergem uma vivência e um sofrimento. Até indivíduos dotados de uma sólida estrutura psíquica, podem ser vítimas de uma paralisia mental induzida pela organização do trabalho.  Isto porque, em um grupo, o sujeito não quer apenas expressar seu próprio desejo, quer igualmente ser reconhecido como um de seus membros.

A organização do trabalho é causa de uma fragilização somática na medida em que ela pode bloquear o modo operatório às necessidades de sua estrutura mental. O conflito entre a economia psicossomática e a organização do trabalho potencializa os efeitos patogênicos das más condições físicas, químicas e biológicas do trabalho. Além disso, quando não há possibilidade de afirmação da personalidade do trabalho, ocorrem processos de depressão e tensão nervosa permanente.

A relação da satisfação com o conteúdo significativo da tarefa, frente ao perfil da organização vai determinar ou não o sofrimento no trabalho. Quanto mais a organização do trabalho é rígida, mais a divisão do trabalho é acentuada, menor é o conteúdo significativo do trabalho e menores são as possibilidades de mudá-lo. Correlativamente, o sofrimento aumenta

Dessa forma, sofrimento e prazer são provenientes da dinâmica interna das situações e da organização do trabalho, ou seja, são produtos dessa dinâmica, das relações subjetivas e de poder, das condutas e ações dos trabalhadores permitidas pela organização do trabalho.

Enquanto o trabalhador age somente em busca dos objetivos da empresa, sem estar de acordo com seus anseios, ele vive como uma máquina. Este modo de vida que não condiz com o seu verdadeiro projeto existencial, pode levar o indivíduo a somatizar doenças. Assim, as doenças psicossomáticas decorrem, geralmente, das inadequações do indivíduo às condições de vida que se encontra. Portanto, a somatização é um processo pelo qual um conflito que não consegue encontrar uma resolução mental desencadeia, no corpo, desordens endócrinometabólicas, ponto de partida de uma doença. Juntamente à maneira do indivíduo se portar no trabalho, surgem as doenças ocupacionais, que são manifestações diretamente ligadas às características do trabalho e condições inerentes à tarefa.

A totalidade do ser humano surge quando se leva em conta a pessoa e não a doença. E aí se passa a compreender a psicossomática como uma resposta de um sistema. Devemos compreender que  a psicossomática compreende a doença não como um evento causal na vida de uma pessoa, mas como resposta de um indivíduo que vive em sociedade, em constante interação com outras pessoas, situada em determinado ambiente físico, e que procura resolver, da melhor maneira possível, sua existência no mundo.

O estudo da psicossomática passou de uma prática dirigida apenas a médicos, para a necessidade de um campo de conhecimentos que possa se voltar para qualquer profissional de saúde, não só porque estes estão incluídos nestas práticas, como também pelo fato de que estão se voltando para o universo dos fenômenos psicossomáticos, e para uma prática de saúde integral.

Considerando esta realidade, o trabalho tanto pode colaborar para o fortalecimento da saúde mental do trabalhador, como também contribuir para a formação de perturbações orgânicas, resultando em manifestações psicossomáticas, e de conduta do trabalhador.

Por: Fabiana Bittencourtt Rangel