Constitui prática comum, após a ocorrência de um acidente, profissionais de saúde e segurança do trabalho (SST) saírem em busca de culpado(s) pelos erros cometidos pelos trabalhadores e superiores hierárquicos por infringirem procedimentos e regras e por falhas técnicas.
Nessa busca usa-se como “ferramenta de investigação de acidente” comparar as prescrições de como a tarefa teoricamente deveria ser feita (protocolos, normas, procedimentos operacionais padrão, regras) com a forma como ela de fato estava acontecendo. As “desobediências e não-conformidades” encontradas são então tidas como “causas do acidente”.
As análises do acidente apresentam ainda, implicitamente ou não, na sua forma de condução, tentativas de aliviar a responsabilidade da equipe de SST pelo fato, muitas vezes, por meio da indicação do “ato inseguro” cometido pela vítima. Uma vez encontrado o culpado ou a falha técnica, a missão é dada como encerrada com algumas sugestões no campo do fortalecimento do comportamento seguro, do reforço da regra a ser seguida, da substituição ou reparação do equipamento que falhou, entre outras ações, sob a crença de que o problema foi resolvido.
As equipes de SST e os demais envolvidos nas “investigações”, cientes de que, após identificarem “causas do acidente”, deverão apresentar e executar “plano de ação das tratativas das causas”, o que costuma ser monitorado pelas ferramentas de gestão (por exemplo: prazo e percentual de ações previstas que foram de fato executadas), tendem a limitar o reconhecimento das causas (e a descrição formal nos seus relatórios de investigação de acidentes) àquelas tratáveis com planos de ação que estejam dentro de seus poderes e capacidades de execução: ocorre a simplificação das causas também como estratégia para não criarem problemas para si mesmos.
O erro do operador, a violação de uma regra ou mesmo a falha técnica em qualquer acidente de trabalho é uma oportunidade de ouro ainda pouco explorada em seu potencial por parte de uma organização, para fazer avançar a segurança e a eficiência dos processos produtivos. Este não deve ser o ponto de chegada das análises de acidente, mas sim o ponto de partida. Compreender os por quês dos erros e das violações às regras por parte dos operadores, e principalmente daqueles com maior experiência, é a forma mais concreta de se aproximar das reais causas, muitas delas de origem organizacional, que contribuíram para a ocorrência do acidente. Mesmo quando se trata de empresas que já se encontram em um estágio mais avançado em termos de SST, onde o número de acidentes se mantém há tempos pequeno e relativamente estável, um novo estágio de segurança poderá ser atingido quando se procura compreender as razões e as interações que estão por trás do descumprimento das regras de ouro, do comportamento inseguro, da não utilização do direito de recusa, etc. Mas não é preciso aguardar que o acidente ocorra. Há três momentos mais promissores, e menos traumáticos, para dar início a esse processo de compreensão e, consequentemente, de melhoria, que, incluem a análise do próprio acidente:
1. Durante a condução do processo de trabalho. A não ocorrência de acidente é uma situação infinitamente mais presente na rotina do trabalho do que o acidente. Isso se dá em razão do esforço contínuo dos trabalhadores, principalmente dos mais experientes, em produzir de forma segura, ainda que sob condições materiais e organizacionais deficitárias e muitas vezes conflitantes (necessidade de conformidades para evitar problemas e passivos e de não-conformidades para conseguir trabalhar e produzir). Sabemos muito pouco ou quase nada sobre essas intervenções, sejam elas de risco ou não, que garantem o sucesso das operações, mantendo a situação sob certo controle. É preciso conhecer e eliminar as perturbações em suas origens que obrigam os operadores a adotar os procedimentos avaliados como inaceitáveis em razão de seu potencial de risco. Para outras situações observadas, a solução passa pela melhoria da capacidade de diagnóstico, e/ou de recuperação de desvios e de erros do trabalhador, ou melhoria da condição de trabalho e da pertinência e da classificação de risco de uma dada norma. Isso pode ser alcançado de diversas formas: sistema de alarmes adequado; sistemas mais transparentes quanto ao processo que facilitem as ações dos operadores; melhoria da capacitação dos inexperientes com base no saber e das vivências dos experientes; institucionalização de espaços para inclusão e desenvolvimento de saberes tácitos e práticos; disponibilização de recursos de intervenção de menor risco (ex.: escada no lugar de um tambor), etc. Em ambos os casos, é importante ressaltar a necessidade de compreender o desvio da ação com base na explicação do próprio trabalhador, questionando a sua relação com as condições tecnológicas, materiais e organizacionais, presentes ou ausentes (como no exemplo dado acima, procurar compreender a história da ausência da escada para a realização da tarefa e a presença do tambor no local), com as quais ele se depara no calor dos acontecimentos daquele momento situado em análise.
2. Na análise sistêmica das situações emitidas pelos “lançadores de alerta”. Alguns trabalhadores, em razão de sua vivência ou intuição, se expõem e se destacam dos demais colegas ao insistirem com certa frequência, verbalmente ou por escrito, na necessidade de atenção para determinada situação que eles avaliam com sendo de risco e que lhes preocupa e lhes tira o sono e o sossego. É preciso identificar e tratar as situações que originaram tais alertas, colocando-as em debate coletivo com os operadores, chefias e experts, avaliando o seu potencial de interação, ainda que inusitada, com outros aspectos, mas que possam potencializar o dano.
3. Após a ocorrência de um incidente (acidente sem vítima). Os sistemas em operação geralmente emitem sinais pré-acidentes, que são percebidos pelos operadores de linha de frente e que podem ser ou não do conhecimento das hierarquias superiores. Geralmente, os próprios operadores conseguem diagnosticar e controlar alguns desses desvios, evitando um mal maior. A abordagem aqui passa pela mesma solução apresentada no item anterior, selecionando e discutindo com a equipe quais são os sinais merecedores de atenção imediata. Dentre tantos sinais e incidentes percebidos, tal escolha não constitui tarefa fácil. Daí a importância de ampliar o leque da discussão, compartilhando a tomada de decisão entre diversos níveis e setores. Os próprios trabalhadores, quando solicitados, têm dificuldade para expressar suas percepções, sobretudo porque conseguem manter a situação de risco sob controle, exigindo técnicas específicas para explicitar seus sentimentos e intuições.
4. Após o acidente ter ocorrido. Uma análise de acidente só é capaz de contribuir efetivamente para o avanço da prevenção e a melhoria do processo quando se analisa a atividade de forma sistêmica, retroagindo na história do evento, sem cair nas facilidades da ilusão retrospectiva, que julga o passado pelo que se passou a saber no presente. Partir do erro do operador e explorar cada detalhe levantado por ele, imbuído da missão de compreender e não de imputar culpa, seja nele ou em novos sujeitos, trás à tona uma grande variedade de situações que precisam ser resolvidas em várias instâncias da empresa. Se despir do paradigma judicializante de achar um ou mais bodes expiatórios, sejam eles trabalhadores ou gerentes; aceitar que o trabalhador (lembrando que líderes também são trabalhadores), na verdade, falhou na sua tentativa de manter o processo sob controle não é tarefa fácil. O erro bem explorado explicita inúmeras situações de vulnerabilidades organizacionais que, se mantidas, ocasionarão mais adiante outros acidentes de natureza distinta daquele em análise. E por que o erro nos ensina? Não é apenas porque ele não se repetirá mais. Analisar o erro nos permite compreender as intenções do trabalhador, o que ele sabia e o que não sabia naquele momento da atividade em curso, naquele contexto vivenciado por ele. Permite também identificar o que estava presente ou ausente e que prejudicou o seu entendimento, que, de outras vezes, lhe deu condições de antecipar ou corrigir com sucesso o curso de sua ação. Deixa claro que explicações morais dos comportamentos dos trabalhadores não são explicações de fato. A culpabilização compromete as análises e a eficácia das tratativas das falhas ao enviesar o entendimento sobre o que aconteceu.
A participação dos trabalhadores na compreensão e na solução dos problemas é peça fundamental para desenvolver a segurança e a eficiência do trabalho. Mas essa participação, ao contrário do usual viés culpabilizante, moralista ou mesmo maniqueísta, deve ser alçada a uma nova prática, ainda pouco explorada em nosso meio: o Retorno de Experiência (REX). E ainda, é o próprio trabalhador que poderá explicar a atividade, ou seja, não apenas o conjunto de ações visíveis, mas, sobretudo, o que/como foi pensado e executado e o que foi pensado e impedido de ser executado de forma distinta daquela planejada por ele. Assim, acessar o compromisso cognitivo do trabalhador nesse nível de entendimento coloca à disposição dos profissionais de SST um novo campo de atuação que evidencia oportunidades de melhorias mais promissoras para a segurança e a eficiência do trabalho. É importante ressaltar que a análise como aqui sugerida acaba chegando a outros níveis hierárquicos e setores, que, por sua vez, vivenciam também seus próprios dilemas, limites e contradições. Daí a necessidade de compreender que as decisões tomadas nas outras instâncias também devem ser analisadas e solucionadas da mesma forma. Torna-se necessário, então, que essa nova abordagem seja uma política da empresa, onde todos os setores tomem ciência prévia, comprovada efetivamente através da prática, de que a ampliação do leque da análise está em busca da melhoria da segurança e da eficiência no trabalho em todos os níveis, não só onde se iniciou a investigação.
A conquista de espaço para transformar o trabalho exige um movimento dialético: melhores análises têm mais chances de despertar interesse e disposição para a compreensão sistêmica dos eventos adversos, o que pode levar a mais apoio institucional, expresso em mais autonomia e recursos para qualificação e aprofundamento dessas análises. Esse movimento demanda também desenvolvimento de habilidades sobre como falar dos achados organizacionais e como abrir espaço (em geral, através de “organogramas informais”) para institucionalizar sua discussão e “digestão” na empresa. Muitas das causas sistêmicas das falhas que as análises compreensivas buscam objetivar, já são conhecidas (às vezes tacitamente, às vezes às claras) pelos líderes e consideradas "parte do jogo". Quando isso acontece, o seu desvelamento é lido por esses líderes como evidência de ingenuidade por parte de quem as formaliza. Nesse caso, o profissional, ou equipe profissional, pode passar a ser tido como "desalinhado e não confiável" pelas lideranças, cujas reações vão do simples silenciamento ao impedimento franco à divulgação das conclusões e à implantação de tratativas mais profundas.
Os determinantes dos comportamentos dos líderes são particularmente difíceis de ser objetivados com análise por não serem dizíveis. Eles podem estar relacionados a contradições e injunções paradoxais derivadas de hipernormatização e judicialização vividas pelas empresas e seus líderes, ou por condições do mercado e da concorrência. Essas “internalidades” criam a “contradição original”: precisar de conformidades para evitar problemas, e de não conformidades para conseguir produzir e sobreviver. Há ainda conflitos entre interesses pessoais dos líderes e interesses das empresas para as quais trabalham, também de difícil desvelamento. Mais uma vez, a participação dos trabalhadores (nesse caso, os que ocupam cargos de liderança) é essencial para a descrição compreensiva dos determinantes dos comportamentos e das vulnerabilidades organizacionais decorrentes, e deverá ser gradativamente conquistada com a recusa das interpretações morais desses comportamentos. Qualquer um dos passos acima exige conhecimento teórico de qualidade e prática compartilhada. Dada a complexidade subjacente ao assunto, recomenda-se que a nova prática se inicie com casos mais simples e menos polêmicos, e que vá avançando para outros de maior complexidade à medida que se aprimoram a técnica e a confiança das pessoas que colaboram com as informações e perceberam os seus benefícios.
Por: Eugênio Diniz - Fundacentro/MG (eugenio.diniz@fundacentro.gov.br)
Francisco de Paula Antunes Lima - DEP-UFMG (fpalima@ufmg.br)
Raoni Rocha – UNIFEI - Campus Itabira (raoni@unifei.edu.br)
Marcelo Araújo Campos - CEPRASST1 (marcelo.campos@pmi.mg.gov.br)