Seria alentador abordar o trabalho como meio de vida e de conquista da dignidade humana. Poder divisar o alívio do esforço/sofrimento no trabalho em face dos avanços tecnológicos e do conhecimento científico na história da humanidade. Contudo, o que se constata no mundo real do trabalho, é um distanciamento crescente entre práticas organizacionais e direitos sociais conquistados. É o paradoxo que encerra o trabalho contemporâneo: sua combinação com precarização social, com adoecimento dos indivíduos, e destruição ambiental.
Refletir sobre o tema conduz a indagações instigantes e inevitáveis. O que é que nos aconteceu histórica e socialmente para estarmos, hoje, a pensar em três binômios:
1) Trabalho e adoecimento, não como um problema individual, mas como um problema de saúde pública que atinge os indivíduos em escala crescente;
2) Trabalho e degradação/crise ambiental, revelando padrões de produção e consumo que rompem os limites de tempo (comprometendo gerações futuras e os mecanismos reguladores dos ecossistemas), e de espaço (contaminando populações próximas e distantes, diversas espécies, destruindo a biodiversidade, a teia da vida, depredando o planeta;
3) Trabalho e precarização social, que compromete gerações, privando-as de educação e trabalho digno, gerando violência social.
Por que os avanços da ciência e tecnologia, não têm se traduzido em emprego e inclusão de amplas parcelas da humanidade? Por que o aumento da produtividade não tem se traduzido em redução das jornadas de trabalho sem prejuízo do salário?
Apesar dos elevados patamares tecnológicos alcançados em todo o planeta, o mundo da produção continua, predominantemente, estruturado e se movendo pela acumulação de capital e lucro. Isto leva à progressiva hipotrofia e perda de uma razão social do trabalho. A lógica produtiva permanece a mesma que regia as relações capital/trabalho no século XIX, aprofundando a apropriação privada da riqueza socialmente gerada e dos elementos da natureza, consolidando o mercado como eixo da sociedade. Esta lógica limita, ou mesmo extingue, as possibilidades do trabalho se constituir um meio de desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano.
Sem dúvida, ocorreram avanços históricos nas sociedades urbano-industriais capitalistas, que resultaram em direitos sociais marcantes durante a Era de Ouro nos EUA, entre 1940 e 1970, e durante o Estado de Bem-Estar Social nos países europeus, entre 1950. No Brasil, desde a Era Vargas, com a Consolidação das Leis do Trabalho, seus desdobramentos posteriores, e a Constituição de 1988. Ao longo do tempo, ocorreu inclusão social de segmentos de trabalhadores em todos estes países, em maior ou menor grau, bem como metamorfoses nas configurações das relações capital/trabalho. Mas, ao concentrarmos nossa análise no momento atual, constatamos retrocessos sociais importantes em relação às três décadas anteriores, traduzidos na crescente precarização do trabalho.
Este é um processo complexo, pois mantém a relação capital/trabalho em sua essência, ao tempo em que transmuta as suas formas de existência. Ou seja, forja mudanças epidérmicas, de superfície, através de diferenciados estatutos de trabalhadores que camuflam a relação essencial capital/trabalho, confundindo as figuras sociais básicas representativas (empregado e empregador ), que norteiam a vigência e a aplicação das leis trabalhistas. Neutraliza e anula a regulação social do trabalho (com a consequente perda de direitos conquistados pelos movimentos sociais anteriormente), naturalizando o trabalho precário, banalizando a injustiça social e a violência no trabalho (principalmente, a violência psicológica). Dissemina uma era de precarização social e de trabalho, socialmente desagregador, terreno fértil para o sofrimento e o adoecimento dos indivíduos, configurando o trabalho patogênico. A precarização, passou a ser um atributo central do trabalho contemporâneo e das novas relações de trabalho, apresentando múltiplas faces e dimensões.
Na verdade, a precarização é um processo multidimensional, que altera a vida dentro e fora do trabalho. Nas empresas, se expressa em formas de organização pautadas no just in time, na gestão pelo medo, nas práticas participativas forçadas, na imposição sutil de autoaceleração, na multifuncionalidade, dentre outros métodos voltados ao controle maximizado. São processos de dominação que mesclam insegurança, incerteza, sujeição, competição, proliferação da desconfiança e do individualismo, sequestro do tempo e da subjetividade. São afetadas as demais dimensões da vida social, laços familiares e intergeracionais. A desestabilização e a vulnerabilidade sociais, conduzem à desvalorização simbólica, com a corrosão do sistema de valores, da autoimagem e das representações da inserção de cada um na estrutura social.
A desestabilização no mundo do trabalho, desde a década de 1980, deu-se com demissões em massa, que reduziram drasticamente os segmentos mais estáveis de trabalhadores, ao lado da expansão de uma multiplicidade de estatutos de assalariamento, explícitos ou não, nas grandes empresas, compondo uma rede de trabalho precário. Muitos demitidos foram reintegrados sob variadas formas de terceirização, e outros tipos de precarização dos vínculos contratuais, a exemplo dos contratos temporários, dos contratos em tempo parcial, configurando situações de trabalho frágeis em relação ao seu estatuto anterior. Outros permaneceram no desemprego de longa duração. Assim, as abordagens foram ampliadas, passando a englobar tanto os trabalhadores do núcleo estável, quanto a cascata de terceirizados, compondo uma rede de novas relações de trabalho marcadas pela crescente precarização. Para fins analíticos, pode-se distinguir algumas dimensões deste processo.
A primeira delas diz respeito aos vínculos de trabalho e às relações contratuais. Compreende o processo sociopolítico de perdas de direitos trabalhistas ou do seu usufruto no mundo do trabalho real (descanso remunerado, férias anuais remuneradas, referenciais de jornada de trabalho normal e de horas extras, dentre outros). Envolve, ainda, as perdas de benefícios indiretos (planos de saúde, transporte, alimentação, auxílio educação, dentre outros), bem como as perdas salariais, em geral, pela não adoção/cumprimento, ou defasagem em relação aos acordos coletivos da categoria de trabalhadores mais "estáveis".
Trata-se de uma dimensão do processo de precarização que leva à desestabilização dos estáveis, à perda dos referenciais de proteção social do trabalho, conduzindo "estáveis" e instáveis a metabolizarem, cotidianamente, a competição desenfreada, a insegurança e a instabilidade, terrenos em que prolifera e se move a gestão pelo medo.
A segunda dimensão concerne à organização e às condições de trabalho que, em todos os setores de atividades, têm se caracterizado pelas metas inalcançáveis e pelo ritmo intenso de trabalho, favorecidos pelo patamar tecnológico da microeletrônica. A forte pressão de tempo somada à intensificação do controle ou da instrumentalização do medo à demissão, conduzem à intensificação do trabalho. O aumento da competitividade também contribui para esta intensificação, além de acarretar ressonâncias negativas para a sociabilidade e para a saúde mental. A constatação de que a hiperatividade está associada ao desenvolvimento de fenômenos como a compulsividade e a autoaceleração vem revelando processos complexos que têm sido estudados sob várias perspectivas. Acrescente-se a exiguidade dos tempos destinados a pausas no trabalho, repouso, recuperação do cansaço e espaço estreitado do tempo de viver e conviver fora do ambiente de trabalho. A escolha organizacional da polivalência trouxe impactos problemáticos para a identidade dos assalariados que antes experimentavam orgulho profissional por suas especialidades. Ao mesmo tempo, a rotatividade no trabalho, entre diversas empresas, com tipos diferentes de contratos, transtornou projetos de desenvolvimento profissional e pessoal de trabalhadores, especialmente dos mais jovens. Estas e outras características da organização do trabalho potencializam a multiexposição aos agentes físicos, biológicos, químicos, ergonômicos e organizacionais, favorecendo sofrimento e processos de adoecimento.
No esgotamento profissional ou burnout, a crise ocorre diante do desmoronamento não apenas de uma visão idealizada de si mesmo e de uma missão, mas também pela percepção de que foi abalado o caráter ético que dava sentido às atividades realizadas. Esse aspecto é especialmente visível quando se trata de um trabalho de natureza social, por exemplo, no ensino, na saúde e na assistência social.
A terceira dimensão, estreitamente ligada às anteriores, consiste na precarização da saúde dos trabalhadores. Esta vem incidindo de modo marcante na saúde mental, que é indissociável da saúde como um todo. Trata-se da fragilização orgânica, existencial e identitária dos indivíduos, pela organização do trabalho com intensificação da multiexposição. Essa fragilização é acrescida das limitações impostas, em muitas empresas, ao bom funcionamento dos SESMTs (Serviços Especializados de Engenharia, Segurança e Medicina do Trabalho) no Brasil em nome de uma equivocada contenção de custos. Essas limitações se expressam, por exemplo, nas defasagens de treinamento e de informação sobre os riscos entre segmentos "estáveis" e terceirizados, na diluição das responsabilidades em relação a acidentes, adoecimentos e falhas na prevenção, além do predomínio das medidas de proteção individual em detrimento da proteção coletiva e das políticas preventivas. Por outro lado, observa-se que a perda de estatuto da maioria dos trabalhadores, dentro das empresas, que são os terceirizados, com contratos temporários etc. conduz a uma maior sujeição às condições aviltantes e insuportáveis de trabalho. Diante das metas e dos ritmos acelerados, frequentemente são utilizados "atalhos" e manobras para aumentar a produtividade e manter-se no mercado que fragilizam a segurança e a saúde no trabalho. Tais aspectos evidenciam os equívocos do economicismo, ao menosprezar o que, em verdade, seriam investimentos em saúde e segurança e não "gastos dispensáveis". Essa postura revela uma negação do valor da proteção à saúde e à vida.
A quarta dimensão da precarização, fundamental para a consistência do tecido social, compreende a fragilização do reconhecimento social, da valorização simbólica e do processo de construção das identidades individual e coletiva. Numa sociedade em que o trabalho ainda ocupa um espaço/tempo central na vida social e individual, sua precarização dificulta o processo de identificação e construção de si, tornando mais complexa a alienação/estranhamento do trabalho. Consolida-se no imaginário social, a noção de descartabilidade das pessoas, de naturalidade da insegurança e da competição de todos contra todos, ancorada na fragilização dos vínculos, nas rupturas de trajetórias profissionais, na perda da perspectiva de carreira.
A quinta dimensão afeta a natureza da representação e organização coletiva (sindical). O binômio terceirização/precarização, ao minar a identidade individual e coletiva, conduz à fragilização dos agentes sociais. São os efeitos propriamente políticos da terceirização que pulveriza e enfraquece os sindicatos, ameaçando sua representatividade pela divisão crescente das categorias profissionais, cada uma com o seu sindicato, com atuações competitivas entre si. Esta fragilização política conduz tanto à discriminação dos terceirizados pela empresa contratante, com espaços demarcados e áreas proibidas, quanto à discriminação entre os próprios trabalhadores do núcleo "estável" e terceirizados. Ademais, ao minimizar as possibilidades de enfrentamento das condições degradantes, a precarização da organização coletiva, aumenta tanto a vulnerabilidade social quanto a individual. A insegurança e a desproteção, vivenciados por todos e por cada trabalhador, produzem reações e desdobramentos de diferentes tipos, inclusive transtornos psíquicos.
É necessário enfrentar a precarização do mundo do trabalho com expansão do emprego, favorecendo real inclusão e pertencimento social, e não apenas vias compensatórias. A redução da jornada de trabalho, pode favorecer esta inclusão, sendo, na verdade, um poderoso instrumento para a geração de emprego, e para as políticas de saúde pública.
Enfrentar a precarização social requer, também, mudanças de mentalidade e cultura política no sentido de civilizar os ambientes de trabalho, banindo agentes agressivos, tais como amianto, benzeno, dentre outros, para "criar um ambiente cada vez mais livre de poluentes que comprometem a existência do planeta. Requer desenvolver consciência em curto, médio e longo prazos, voltada para diferentes padrões de produção e consumo, novas bases energéticas, vislumbrando um novo padrão de civilização que passa pela ressignificação do trabalho. Enfim, um mundo do trabalho não predatório, que sirva para construir a sociabilidade e não a destruir. Que, ao nutrir-se da natureza, respeite seus ciclos, limites e complexidades.
Contribuição:
Tânia Franco: Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (CRH/FFCH/UFBA), Salvador, BA.
Graça Druck: Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA); Pesquisadora do CRH/FFCH/UFBA, Pesquisadora do CNPq. Especialista na área de Sociologia do Trabalho, Salvador, BA
Edith Seligmann Silva: Médica psiquiatra com especialização em Saúde Pública. Docente aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP