Perdoar é bom para a saúde e para a alma, diz terapeuta francês

Sandro Azevedo | 5783 Visualizações | 2019-07-03T22:19:22-03:00

via : Ciência e Saúde
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O terapeuta francês Jacques Lecomte, doutor em Psicologia e autor de diversos livros sobre o tema, explica como se constrói o conceito do perdão. Estudos recentes mostram que o ato de perdoar protege o organismo dos efeitos do stress

Basta consultar a bibliografia do terapeuta francês Jacques Lecomte, 63 anos, ex-professor da universidade de Nanterre, para entender o que ele busca transmitir em suas conferências e os conceitos que permearam seu trabalho ao longo da vida.

Um dos livros chama particularmente a atenção: “Bondade humana: altruísmo, empatia e generosidade.” Não foi por acaso que ele interessou pela questão do perdão.

O autor francês viveu esse dilema através de sua própria história pessoal. Vítima de um pai violento, ele viveu na pele as várias etapas que o levaram a perdoar seu algoz. “Não fiz minha tese por acaso. Foi para tentar entender minha própria trajetória”, diz.

O título da tese de doutorado de Jacques Lecomte, publicada em 2002, e uma das raras sobre o tema na França, é “Quebrando o Ciclo da Violência: quando crianças maltratadas não se transformam em adultos que maltratam os filhos”.

No estudo, ele ouviu testemunhos de pessoas que conseguiram se libertar do rancor de suas feridas familiares e tocaram em frente, impedindo esse passado de paralisar suas existências. Em suas entrevistas, ele percebeu que o “perdão” aparecia com frequência nos relatos. Nos questionários, entretanto, o psicólogo buscou evitar o termo, pela sua conotação religiosa. “Preferi perguntar se as pessoas ainda sentiam ódio, sim ou não, e o “nível” desse ódio”, explica.

Durante as entrevistas, ele notou que o sentimento de ódio, normalmente potencializado durante a adolescência, havia desaparecido em alguns casos na idade adulta, e os participantes utilizavam o termo “perdão” para designar esse novo estado de espírito, livre de rancor. Conceituar o termo é complexo e raros são os pesquisadores que se dedicam ao assunto.

Jacques Lecomte exemplifica essa dificuldade pela diferença entre perdoar e “deixar para lá”, caso de um de seus entrevistados. Trata-se de um dentista que cresceu sendo rebaixado pela mãe, que dizia que o menino nunca seria alguém na vida.

“Ele dizia: hoje não ligo. Minha mãe pode dizer o que quiser, é um problema dela, não meu. Isso, por exemplo, não é perdoar, é “deixar para lá”, diz o pesquisador. O perdão, explica, gera uma sensação de bem-estar e plenitude que vai além desse sentimento.

Não é novidade o efeito negativo que a secreção excessiva do cortisol, o chamado hormônio do stress, provoca na saúde, afetando as funções cardiovasculares e o sistema imunológico. Quando esse stress envolve maus-tratos vividos na infância ou outros fatos graves, há uma incidência maior de depressão e outras doenças mentais.

Em 2016, um grupo de pesquisadores da universidade da Califórnia e do Luther College, no Iowa, especialistas em psiconeuroimunologia e ciências comportamentais, concluiu um estudo inédito, publicado no Journal of Health Psicology, sobre como o perdão pode proteger a saúde de jovens adultos. Cento e quarenta três pessoas foram entrevistadas e o resultado mostrou que as pessoas capazes de perdoar tinham menos problemas físicos e mentais ocasionados pelo stress acumulado, reduzindo o risco desenvolver essas doenças a praticamente zero.

“O perdão nunca é um dever, nem religioso e nem terapêutico”, diz Lecomte. — Foto: Pixabay

O autor francês frisa que, apesar das evidências sobre os benefícios do perdão sobre a saúde, ele não deve ser “imposto” a qualquer custo, e depende do tempo de cada um. “Também não se deve impor o perdão a alguém por questões religiosas. Como hoje sabemos que o perdão faz bem, também há terapeutas que impõem o perdão terapêutico”, diz.

Segundo ele, essa atitude pode ser nociva para o paciente, que se sentira então culpado por não se sentir capaz de perdoar. “O perdão nunca é um dever, nem religioso e nem terapêutico”, continua Lecomte.

Em sua tese, ele também percebeu que a relativização ajudou no processo vivido pelos adultos que foram crianças maltratadas. Alguns de seus entrevistados perceberam que seus avós, por exemplo, era mais violentos do que os pais – o que demonstrava um esforço para não reproduzir o modelo. Ele também lembra que o fato da França ser um país laico, a palavra “perdão” muitas vezes cria um bloqueio por conta de sua conotação religiosa.

É importante também, diz, diferenciar o perdão do esquecimento. Quando se perdoa alguém, lembra o autor, os fatos continuam presentes na memória, mas não influenciam as ações. Jacques Lecomte cita um texto de Nelson Mandela, “Perdoar não é esquecer”, onde o líder sul-africano salienta que é importante lembrar das atrocidades que ocorreram durante o Apartheid, para que elas não voltem a ocorrer.

O autor também se lembra do depoimento de uma mulher que participou de sua pesquisa. Ela contou que levantou a mão para bater em seu filho de cinco anos, mas que não o fez porque viu em sua atitude o gesto de sua própria mãe, que a maltratava. Essa lembrança foi suficiente para que ela nunca mais fosse tomada por esse impulso. O perdão, desta forma, se constrói através da memória, explica o doutor em Psicologia francês.

O processo do perdão é complexo, explica, porque envolve as duas partes. Em alguns casos, não há reconhecimento da culpa, e isso pode ser doloroso. Em outros, de resiliência máxima, não se espera que o outro aceite ter cometido uma falta para perdoá-lo da mesma maneira.

Várias publicações do psicólogo que dirigiu a tese de Lecomte, Etienne Mullet, hoje aposentado, mostraram que o reconhecimento era um facilitador do processo do perdão. A etapa da reconciliação, desta forma, dependerá desse fator. “Às vezes a pessoa sofre mais com o não-reconhecimento do mal causado que com próprio ato”, diz. Seja qual for o caso, e perdoando ou não, não alimentar a raiva, como mostram as pesquisas, só pode trazer benefícios.

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