Alerta sobre a transmissão da Covid pelo ar é importante para hospitais e transporte, diz cientista brasileiro que assinou a carta; entenda o debate
Um grupo de 239 cientistas de vários países, publicou nesta segunda-feira (6), carta aberta pedindo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheça o potencial de transmissão da Covid-19 pelo ar, principalmente em lugares fechados, e atualize as medidas de proteção contra o coronavírus.
"Existe um potencial significativo de exposição por inalação ao vírus em gotículas respiratórias microscópicas (micropartículas) a distâncias curtas a médias (até vários metros), e estamos defendendo o uso de medidas preventivas para mitigar essa via de transmissão aérea", aponta o texto da carta.
O infectologista Paulo Saldiva, professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP - único brasileiro no grupo - explica que, na prática, o documento é um alerta de que o distanciamento entre as pessoas de 1 a 2 metros não é eficaz contra o coronavírus, principalmente em locais fechados que não tenham um sistema de renovação do ar.
"Vimos que o coronavírus permanece muito mais tempo no ar e viaja a uma distância maior do que 2 metros em determinados ambientes", explica Saldiva.
"A recomendação de se manter mais de um metro e meio de distância de uma pessoa infectada vale mais para doenças bacterianas, como a tuberculose, em que as partículas são maiores, mais difíceis de serem carregadas pelo ar, mas não para o coronavírus, que se propaga por partículas menores", compara o pesquisador.
Em resumo, o documento explica que enquanto gotículas maiores expelidas ao falar ou tossir caem rapidamente no chão, os aerossóis - pequenas gotículas que permanecem no ar por mais tempo, podem flutuar no ar e se espalhar em ambientes fechados, podendo ser inaladas até horas depois por inúmeras pessoas.
A carta também é um reforço sobre a importância do uso da máscara pela população em geral, medida já recomendada pela OMS desde o início da pandemia.
A posição da OMS quanto à transmissão da Covid-19 pelo ar, no entanto, é de que o vírus se espalha principalmente por gotículas respiratórias maiores, que não alcançam mais que 2 metros de distância, e logo caem no chão ou superfícies. A OMS diz que está avaliando o conteúdo da carta. O Centro Europeu de Prevenção e Controle das Doenças (ECDC), e institutos de pesquisa em saúde dos governos do Reino Unido e da Alemanha, já reconhecem essa possibilidade.
Tópicos da carta dos cientistas
Veja abaixo os principais pontos defendidos pelos cientistas que assinam a carta publicada nesta segunda:
- Coronavírus pode se acumular no ar em locais fechados
O principal alerta da carta é em relação ao acúmulo do vírus em locais sem ventilação: o coronavírus pode se acumular no ar em ambientes fechados e infectar várias pessoas que respirarem o mesmo ar. Daí a importância dos locais não ficarem lotados, terem boa ventilação e um sistema de filtragem do ar.
"Este alerta é principalmente para hospitais e transportes públicos", diz Saldiva.
O pesquisador dá como exemplo um hospital em Hong Kong, em 2002, que recebeu um paciente infectado pelo SARS, e pouco depois, infectou dezenas de pessoas que estiveram no local. "Um único paciente contaminou mais de 100 pessoas no hospital pelo sistema de ar condicionado", explica.
O médico também ressalta a quantidade de profissionais da saúde que já se infectaram com o coronavírus como um indicador de transmissão do coronavírus pelo ar em ambientes fechados.
"Os hospitais precisam ter um sistema de ventilação adequado, de lavagem do ar. É muito mais barato investir na filtragem do ar do que deixar a equipe médica adoecer", aponta Saldiva.
"O coronavírus pode permanecer no ar por até três horas, dependendo das condições do ambiente, do vento no local e da umidade", esclarece Saldiva.
Tomando como base a reabertura do comércio e bares, o médico explica que não é preciso conversar ou ficar próximo de um infectado para se contaminar com o coronavírus.
"Se você for em um restaurante que duas horas atrás recebeu uma pessoa contaminada, você poderá inalar o vírus mesmo sem ter estado ao mesmo tempo que o infectado no local", exemplifica o professor.
O risco de se infectar pelo ar nestas condições, aumenta quanto maior for o tempo de permanência no local fechado. "Assim, o risco é muito maior para quem trabalha nesses locais", afirma Saldiva.
Transmissão pelo ar ajuda a explicar os super-espalhadores
"A transmissão aérea parece ser a única explicação plausível para vários eventos de super-espalhadores que ocorreram sob tais condições [em ambientes lotados e/ou fechados], e outros onde as precauções recomendadas relacionadas à transmissão direta de gotículas, foram seguidas [e mesmo assim houve a contaminação]", aponta o texto da carta.
De acordo com estudos sobre os "super-espalhadores", a transmissão do coronavírus seguiu um padrão em que poucos infectados foram responsáveis pela maior parte do casos, como tem acontecido em frigoríficos e fábricas.
Até que ponto o coronavírus pode permanecer no ar em locais abertos?
Esta permanece sendo uma questão ainda sem resposta pelos cientistas. "É o que todos queremos descobrir", diz o professor.
Saldiva conta que está em curso uma pesquisa que tenta relacionar as variações de poluição de uma cidade, com as variações de infecção pelo coronavírus na população. A hipótese é que o vírus possa ser carregado pelo ar em regiões com concentração de infectados, como hospitais e enfermarias.
O que recomenda a carta para evitar a transmissão pelo ar
Além do uso da máscara em locais públicos, a carta recomenda que:
- Ambientes fechados tenham ventilação eficaz (ar limpo e filtrado), particularmente em edifícios públicos, ambientes de trabalho, escolas, hospitais e casas de repouso de idosos
- Locais fechados adotem controles de infecção aérea, como filtragem do ar de alta eficiência e luzes ultravioletas germicidas
- Os locais evitem a superlotação, principalmente em transportes e edifícios públicos
- Quando não for possível uma ventilação mecânica, deve-se manter portas e janelas abertas para garantir o fluxo de ar pelo ambiente
O vírus pode entrar na minha casa pelo ar?
O professor do Departamento de Química e Bioquímica da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, José Luis Jimenez, um dos pesquisadores que também assina a carta, fez uma postagem logo após a publicação da carta para explicar que o alerta de que o coronavírus pode ser transmitido pelo ar, não representa uma ameaça à população em geral.
A transmissão pelo ar não significa que o vírus é capaz de percorrer as ruas por horas, "chegando às casas em todos os lugares".
O que dizem organizações sobre a transmissão da Covid-19 em locais fechados?
Recentemente, o Centro Europeu de Prevenção e Controle das Doenças (ECDC) e institutos de pesquisa em saúde dos governos do Reino Unido e da Alemanha, também passaram a considerar a transmissão da Covid-19 pelo ar, principalmente em locais fechados.
No dia 22 de junho, o ECDC publicou documento alertando a população sobre a ocorrência de surtos de coronavírus em locais de trabalho como escritórios e fábricas, assim como, em ambientes fechados como igrejas, restaurantes, shopping centers, dormitórios de trabalhadores, navios de cruzeiro e veículos.
"A falta de ventilação em espaços internos está associada ao aumento da transmissão de infecções respiratórias. Houve inúmeros eventos de transmissão da Covid-19 associados à espaços fechados, incluindo alguns, de casos pré-sintomáticos", afirma o documento do ECDC.
No dia 26 de junho, o Instituto Robert Koch, na Alemanha, incluiu em suas diretrizes sobre o coronavírus, o item "Infecção por gotículas/ aerossóis", em que afirma: "Estadias prolongadas em salas pequenas, mal ventiladas ou não ventiladas, podem aumentar a probabilidade de transmissão por aerossóis, mesmo a uma distância superior a 2 metros".
Já o governo do Reino Unido publicou o documento "Revisão da medida de distanciamento social de 2 metros", onde incluiu como forma de transmissão do coronavírus, a "transmissão por aerosol".
"O risco mais alto [de infecção por coronavírus], ocorre em espaços fechados, lotados e com pouca ventilação, por um longo período de tempo", complementa o documento do governo inglês.
A OMS, que mantém a posição de que a Covid-19 se espalha principalmente por gotículas respiratórias maiores, como em tosses e espirros, informou ao G1 que está revisando as informações da carta assinada pelos cientistas, quanto à transmissão do vírus pelo ar.
"Estamos cientes do artigo, e estamos revisando seu conteúdo com nossos especialistas técnicos", afirmou em nota a OMS.
Fonte: G1